MÃE DO CORPO, PARTEIRA DA CONSCIÊNCIA
Autor(a): Daniela Rosa
Já passa da meia-noite e já estamos, portanto, na manhã do dia 20 de novembro. Dia em que no Brasil se tornou o dia da Consciência Negra. Uma consciência que como mãe e também como profissional eu busco manter, promover e fortalecer pra muito além desta data. Já passava da meia-noite quando meu filho mais velho, acometido por um daqueles episódios de insônia infantil que tanto afligemà pais e mães cansados e que persistem repetindo quase como um mantra para que a criança durma. Ao invés disso, uma sucessão de pedidos dos mais variados sai com aquela voz fina e doce e prolongam por minutos-e por vezes horas- intermináveis noite adentro. Estes pedidos variam entre comida, bebida, brincadeiras e vão dando um tom cada vez mais dramático aos pedidos para que a criança durma e um ímpeto cada vez mais forte na criança para fazer exatamente o contrário. Até que eles finalmente adormecem e nos surpreendemos olhando com ternura para o rostinho suave, ou saindo às pressas do quarto para realizar uma última tarefa do dia, já anterior.
No entanto, este momento pode oferecer também uma oportunidade muito rica de conversa. Daquelas que bem sabemos podem não se repetir e que tendem a ser um momento em que nossa criança tão amada nos dirige perguntas, comentários e reflexões das mais variadas, tornando o momento também importante para que possamos tecer ali uma trama de confiança, companheirismo e também transmitir-mas especialmente captar- coisas importantes para a formação deste pequeno ser. Ainda me lembro de algumas das conversas que tive com minha mãe, mas só agora consigo mensurar o quantoforam fundamentais para minha formação. E o quanto podem ter sido desafiadoras para minha mãe.
Foi justamente um momento destes que acabei de viver, depois de atender a parte daqueles pedidos que mencionei, já tendo esgotado meus argumentos para convencê-lo de que já passava, e muito, de sua hora de dormir, baixei a guarda e, ainda bem, me abri para a conversa furtiva que surgiu entre nós enquanto o irmão mais novo já suspirava há horas já no ‘terceiro sono’ na cama ao lado. E foi então que já no início do tão significativo dia da Consciência Negra eu ouvi um comentário que me fez ter vontade de escrever e finalmente retomar minha coluna aqui. E que também me fezperceber a importância de meu trabalho. Com a voz doce e um tanto indignado meu filho mais velho me disse: “Mamãe, o (mencionou o nome de um coleguinha) me disse que ser branco é melhor”. Eis o tipo de coisa que me faz o coração disparar, mas com calma pedi a ele que me contasse mais a respeito e perguntei se ele concordava. Conversamos um pouco mais a, ele me explicou que entendia que não era verdade e argumentei que vivemos em uma sociedade que nos leva a crer o tempo todo que isto realmente seria melhor: ser branco.
Conforme conversava com ele ia pensando em estratégiasparacolocá-lo diante de elementos positivos ligados aos negros e negras em nosso país e no mundo, aqueles elementos à que não temos acesso cotidianamente quando ligamos a televisão, quando apresentamos à eles um super herói, compramos um livro ou uma revistinha. Elementos que realmente nos apresentem imagens positivas de corpos negros, de nossa história e nossa experiência. Bom, por sorte em dediquei a reunir um bom material sobre isso. Mas havia em mim um medo. O medo de ver meu filho passando pelas dores que passei ao sofrer com as manifestações racistas. Medo da insegurança com a própria origem e aparência, mas me mantive tranquila e tentei não falar demais. Busquei ouví-lo.
Pensei também, e muito, na criança um pouco mais nova,que fizera tal comentário, e que também acaba afetadapor um contexto apresentado à ela de forma tão distorcida que lhe causa a mais nítida impressão de que ter a pela clara ou ‘branca’ e muito melhor. Preciso deixar nítido que se estivesse ao meu alcance eu faria com esta criança esta mesma conversa. Com a mesma ternura e cuidado com que fiz om meu filho, pois eu compreendo esta fala, de certa forma muito ‘bem-vinda’ como expressão do que observo há anos, como uma fala baseada numa leitura fragmentada e enviesada, de uma questão profundamente complexa e que, ao contrário do que muitos tendem a acreditar, está sim ao alcance da percepção de uma criança. Elas leem o mundo com uma perspicácia muito maior do que pensamos. E nesta leitura percebem onde estão e onde não estão os negros e negras em nossa sociedade. Percebem o privilégio, o estigma, a desigualdade e expressam de forma simples, como fez o coleguinha de meu filho com esta frase, algo que muitos adultos relutam muito para reconhecer.
E nesta manhã deste dia 20, data de tantas mobilizações e reflexões. Data de disputas e também muitos maus entendidos, me dei conta de que muito além da mãe do corpo desta criança que recebi nesta mundo, eu sou também responsável por aquilo que vai formar sua consciência negra. Mas desta, eu não poderei ser mãe. Esta não poderáser gerada por mim e entregue a ele como o fiz com sua vida, uma vida que luto diariamente para que seja enriquecida pela consciência de sua ascendência, de sua origem , de seu lugar. Luto para que se orgulhe disso e busque se fortalecer a partir dela. Uma consciência que eu não poderei parir, mas quero poder partejar!