Postado em quarta-feira, 10 de novembro de 2021
às 20:08
“De Alfenas a Alfena: crônica de uma viagem entre cidades irmãs de diferentes mundos”, por Flaviane Faria Carvalho
Leia a crônica escrita pela jornalista e linguista, professora do curso de Letras da Unifal (Universidade Federal de Alfenas).
Nasci na cidade sul-mineira de Alfenas. Morei – e meus pais ainda moram – na Rua Martins Alfenas. Desde pequenina, abria bem os olhos e apurava bastante os ouvidos quando alguém contava “causos” sobre a origem da minha terra. Passo agora a cumprir esse papel com vocês, leitoras e leitores, fazendo uma breve expedição por essa história.
A região onde hoje se situa a cidade de Alfenas foi habitada por índios tupi-guarani e sapucaí (sendo este último o nome de um dos antigos rios situados aos arredores do município, inundado nos anos 1960 pela Represa de Furnas).
No século XVIII, com o desenvolvimento da mineração e a descoberta do ouro, nosso país recebeu o maior fluxo migratório de todos os tempos: 600 mil portugueses e um milhão e 600 mil africanos. E, paulatinamente, nossos povos indígenas foram desaparecendo, por aculturação, fuga ou extermínio, durante as disputas pela posse e direito de uso das terras.
E foi assim que Brasil passou a reunir a maior população africana fora da África e a maior população lusitana fora de Portugal. A partir de então, os imigrantes deixavam de ser predominantemente fazendeiros e agricultores, passando a dedicarem-se à exploração do ouro e ao comércio nas cidades.
A maior parte dos imigrantes eram originários do Minho, norte de Portugal, em decorrência do elevado crescimento populacional registrado nesta região durante esse período. Inicialmente, a Coroa Portuguesa incentivou a ida de minhotos pobres para o Brasil, que se fixaram principalmente em Minas Gerais, onde foram encontradas minas de ouro.
Essa imigração dos portugueses da região do Minho para Minas Gerais exerceu influência direta nos valores e costumes desta capitania. Pesquisas realizadas por historiadores ressaltam que, ao contrário do que se verificou em outras partes do Brasil, em Minas, observa-se uma completa transposição do espírito e da civilização portuguesa: apesar da miscigenação generalizada entre homens portugueses e mulheres africanas, os mestiços acabavam por adotar a língua, os costumes, a religião e a mentalidade do pai português.
Vinda também do norte de Portugal, a família Martins Borralho é a mesma que, mais tarde, ficará conhecida como Martins Alfena, oriunda da cidade portuguesa de Alfena, que imigrou para Minas Gerais no século XVIII. Segundo o costume português, quando um imigrante se instalava em algum lugar do Brasil, incorporava ao seu sobrenome o nome do seu local de proveniência. E foi assim que os dois irmãos, José e João Martins Borralho, naturais da cidade portuguesa de Alfena, passaram a ser chamados de José e João Martins Alfena – “Os irmãos Alfenas”. Esses irmãos tiveram um papel determinante no início do povoamento da cidade, devido aos seus esforços para a construção da primeira capela, a partir de 1799, em homenagem a São José e Nossa Senhora das Dores, em torno da qual foi constituída a vila. Em 1832, foi criada a freguesia de São José de Alfenas, tornando-se poucos anos depois a Vila Formosa de Alfenas e, em 1871, foi elevada à categoria de cidade, passando a chamar-se Alfenas, atualmente com mais de 80 mil habitantes.
Pronto. Ficamos então a saber sobre os fundadores e a razão do nome da nossa Alfenas brasileira. Surpreendentemente, o destino levou-me para bem perto da cidade onde nasceram os fundadores da cidade de Alfenas. Afinal, de 2008 a 2012, vivi em Lisboa, capital de Portugal, para cursar meu doutorado. E, na época, descobri Alfena, uma pequena e antiga cidade portuguesa, com pouco mais de 18 mil habitantes, situada a 12 Km do Porto.
O documento mais antigo referente a Alfena data de 1214, onde faz menção a uma gafaria, nome dado a um hospital para leprosos, situado num lugar chamado Alfena. Até finais do século XVI, o nome Alfena coexistiu com a designação São Vicente da Queimadela, dada a relevância do hospital de leprosos, o que teria tornado esta terra conhecida por todo o país. Posteriormente, o topônimo Alfena prevaleceu e se consolidou como o nome oficial do município.
E qual seria a origem do nome Alfena? Deriva da expressão árabe “al-henna”, planta arbustiva de flores brancas e bagas negras abundante no local e que era muito utilizada para fins de tingimento. A representatividade dessa planta é tanta que os ramos do alfeneiro encontram-se desenhados no brasão da cidade de Alfena. Engana-se quem pensa que em nossa Alfenas mineira alguma vez já foram encontrados exemplares originais de alfeneiros. Somente em Alfena mesmo, e em outras cidades portuguesas. Na realidade, foram os colonos portugueses que trouxeram as mudas da planta para Minas.
Determinada a conhecer a cidade, fui até o Porto e apanhei um ônibus que me levasse a Alfena. Já no ônibus, a caminho de Alfena, fiquei a observar todos os passageiros que estavam a fazer aquela curta viagem comigo: seus traços, feições, trejeitos, conversas… Queria, forçosamente, encontrar algum tipo de semelhança entre as pessoas daquela cidade portuguesa e as da minha cidade brasileira. Puxo conversa com uma simpática senhora portuguesa alfenense, que me aconselha descer no ponto próximo à Igreja Matriz de São Vicente, padroeiro da cidade. Datada de finais do século XVII, a igreja foi toda reformulada a partir de 1970, ficando mais ampla, moderna e funcional. Em janeiro, acontece, junto à referida Matriz, a Romaria de São Vicente, com as tradicionais barracas de doce, figos e regueifa – rosca bem típica, feita com farinha de qualidade impecável. Coincidência ou não, em Alfenas, a Rua Martins Alfenas cruza, em uma pequena praça, com a Rua São Vicente.
Apeio, e respiro o cheiro da cidade. Olho ao meu redor e vejo muito verde. São os campos férteis e irrigados pelo Rio Leça. E muitos pés de couve, por todos os lados, inclusive em cada alpendre de casa. Após dar uma olhadela pela Igreja Matriz, sigo pela Rua de São Vicente, e começo a ficar confusa, quando avisto o Centro Cultural de Alfena, os ônibus com a designação Alfena, a Junta de Freguesia de Alfena – equivalente a uma microprefeitura da cidade. O fim da rua termina numa pequena fonte, próxima à Farmácia de Alfena. Até então, a impressão que eu tinha era de estar visitando uma cidade portuguesa já descaracterizada, cujas casas e edificações já não ostentavam a riqueza arquitetônica do passado. Em uma só rua, é possível ver casas antigas intercaladas com pequenas mansões de estilos variados, desde chalés suíços, casas amplas e com redes – bem ao estilo brasileiro –, até guirlandas desejando simpáticos “Merry Christmas”, o que assinala o elevado número de emigrantes portugueses que, após fazer a vida no exterior, regressaram à terra natal trazendo as influências do país para onde emigraram.
Outro detalhe reteve a minha atenção: em cada jardim ou entrada das casas, havia uma mesma planta protegida por um guarda-chuva. Curiosa para saber a razão daquilo, perguntei a uma senhora alfenense, que estava a varrer a calçada de sua casa, o porquê de fazerem aquilo. Ela me respondeu que a estrelícia era uma planta muito sensível, originária de clima tropical, e que não resistia levar com neve em cima dela, por isso era necessário protegê-la com um “chapéu-de-chuva”.
Desfeita a dúvida, fui então à procura dos vestígios de ocupação romana naquele local. E encontrei a Ponte do Arquinho, feita de granito e composta por apenas um arco. Outra ponte de origem romana e reconstrução medieval é a Ponte de São Lázaro, construção em granito constituída de dois perfeitos arcos. Essa ponte situa-se no lugar mais belo e pitoresco da cidade: o centro de lazer de São Lázaro, onde também se encontra a pequena e modesta Capela de São Lázaro, edificada por volta de 1623 e que, segundo relatos de pesquisadores, tinha seus cultos relacionados com a antiga leprosaria de Alfena. Anualmente, é celebrada a Festa de São Lázaro, no domingo anterior ao domingo de Ramos.
Mas famosa mesmo é a romaria de Senhora do Amparo, comemorada no último domingo de julho. Todo o percurso da procissão – que começa na Igreja Matriz e termina na Igreja de Nossa Senhora do Amparo – é decorada com coloridos tapetes feitos à base de flores, pó de serragem pintada, sal e outros produtos. Quando a procissão chega ao fim, os estudantes tradicionalmente estendem as suas capas para que o andor da Nossa Senhora passe por cima, prestando, assim, uma homenagem à santa padroeira dos universitários de Alfena.
Foi na porta da Capela de Nossa Senhora do Amparo, edifício setecentista com ricos detalhes artísticos, onde encontrei um grupo de jovens alfenenses. O instinto de jornalista fez-me logo abordar um dos rapazes:
_ Olá! Como se chama? Você é alfenense?
O rapaz respondeu:
_ Sou sim. Meu nome é José Maia.
E eu continuei, com um sorriso tímido:
_ Sabia que eu também sou alfenense? Mas de uma cidade brasileira chamada Alfenas. Vim conhecer as origens dos fundadores da minha cidade natal.
_ Ah, sim? Já ouvi mesmo dizer que há uma Alfena com “s” no Brasil – replicou José Maia.
Assim começou a conversa entre nós, alfenenses de continentes distintos. Perguntei qual era a festa popular da qual ele mais gostava, pelo que ele me respondeu o Carnaval, embora dissesse que essa festa estava perdendo força nos últimos anos. Segundo José Maia, o Carnaval era bastante divertido, com a presença de foliões e carros alegóricos e, também, com críticas lançadas às instituições administrativas locais, apontando as falhas e as necessidades da comunidade. Bem diferente do Carnalfenas – pensei com os meus botões.
José Maia também fez alusão ao Motoclube de Alfena, cujas concentrações organizadas durante os meses de maio e junho estão entre as maiores do país e atraem milhares de pessoas todos os anos.
O rapaz também comentou que sua cidade ficou conhecida por receber a visita, em 1990, de um Objeto Voador Não Identificado (OVNI), o que imediatamente me fez lembrar os episódios ocorridos em Varginha, cidade vizinha de Alfenas, também na década de 90, precisamente em 1996. Várias testemunhas relataram ter visto o OVNI durante 50 minutos, ora parado, ora em movimento, e que o mesmo tinha uma forma esférica e cinco apêndices semelhantes a patas. As fotos feitas do objeto foram enviadas para a NASA e para a Kodak, e foram consideradas verdadeiras, pois não foram feitas em computador nem pareciam com balões ou sondas. Até os dias de hoje, cientistas e investigadores da área ainda não conseguiram explicar o fenômeno.
Indaguei a José Maia sobre a culinária típica de Alfena. O consumo das couves era evidente, brinquei. Afinal, era o que eu mais encontrava por todos os lados. Ele sorriu e contou que os hábitos alimentares locais seguiam os do Porto, dada a influência e proximidade com esta cidade. As “Tripas à Moda do Porto” são muito apreciadas e possuem uma interessante história. O Infante D. Henrique, um dos pioneiros dos Descobrimentos, tendo de abastecer as naus para a tomada de Ceuta em 1415, pediu aos habitantes portuenses todos os tipos de alimentos. Sacrificada, a população ficou apenas com os miúdos das carnes, inclusive as tripas, o que as levou a inventar alternativas alimentares, surgindo assim esse tipo de prato. E não fica por aí. Alfena tem a fama de preparar um ótimo Arroz de Cabidela, feito à base do sangue de galinha. A palavra cabidela, inclusive, é de origem angolana e significa “miúdos de aves”.
E por falar em aves, um dado curioso: Alfena possui, desde 1929, um Grupo Columbófilo, dedicado à criação de Pombos-Correios, que, ao longo dos séculos e muito antes da Internet, cumprem a importante missão de transmitir mensagens para os mais diversos lugares do mundo.
O sol estava quase a se despedir. Agradeci a José Maia pela conversa agradável. Ele pediu-me para transmitir as saudações portuguesas de Alfena para a Alfenas brasileira…
E cá estou, como um pombo-correio… de Alfenas. Na tentativa de reatar, pessoalmente e fisicamente, as duas pontas dessa história.
* Texto originalmente escrito em 2011, com dados atualizados em 2021.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Alfenas Hoje
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