Postado em sexta-feira, 23 de outubro de 2020
A gastronomia nacional perdeu os segredos
A investigadora Guida Cândido desmontou as origens de dezenas de pratos tradicionais portugueses. O resultado trouxe novidades surpreendentes, escondidas em fontes históricas.
“Avida secreta da cozinha portuguesa”. Diz quase tudo o título do mais recente livro de Guida Cândido, autora que tem dedicado os últimos anos a desbravar segredos sobre a gastronomia portuguesa, plasmados em obras como “Cinco séculos à mesa” ou “Comer como uma rainha”. A ideia, desta vez, foi descobrir as raízes históricas de dezenas de pratos tradicionais, de modo a perceber a sua evolução.
“Tentei desfazer alguns mitos”, assume Guida Cândido, que tem um mestrado em Alimentação (Fontes, Cultura e Sociedade), realizado na Universidade de Coimbra. “Estamos agarrados a verdades sobre a nossa cozinha que são tidas como dados adquiridos e estão longe de o ser, pois não existem provas factuais que as confirmem”, assinala. Ou não existiam, pelo menos até agora, porque o que Guida Cândido pretendeu ao percorrer as profundezas da gastronomia foi conhecer as suas raízes mais entranhadas no tempo. Para isso, consultou um imenso manancial de bibliografia secular, onde encontrou referências surpreendentes. Uma pesquisa morosa que permitiu acrescentar novos dados à História.
“O livro tem receitas que começam na matriz gastronómica portuguesa, algumas com cinco séculos”, pormenoriza. “Quis pensar o receituário tradicional e perceber até que ponto é mesmo tradicional e faz parte do nosso ADN enquanto país.”
Algumas das surpresas encontradas durante o processo que conduziu à elaboração de “A vida secreta da cozinha portuguesa” podem ser lidas nestas páginas. Mas há mais, muito mais, nas 272 páginas do livro, editado pela D. Quixote e dividido não pela origem do produto dos pratos em descrição mas pela ordem de entrada na mesa. Como a discussão em torno do pastel de bacalhau, que nos primórdios, no início do século XIX, era cozinhado com… queijo. Ou em torno da açorda, rodeada de dilemas ancestrais que colocavam em campos opostos os que a defendiam enquanto tal e os que garantiam que mais não era do que uma derivação das célebres migas alentejanas.
“Interessante foi, também, perceber que a partir dos séculos XVIII e XIX se deu uma suavização dos sabores em prejuízo das especiarias, até então bastante utilizadas na cozinha portuguesa”, relata.
Guida Cândido começou por fazer uma seleção de 50 receitas ditas tradicionais e, a partir desse acervo, desfiou um novelo que pareceu infindável, tão rica é a gastronomia portuguesa. “Quis encontrar as fontes originais dessas e de outras receitas que foram surgindo”, recorda. E assim foi durante um ano de trabalho “árduo e intenso”, que teve como recompensa um resultado que pode abrir outras portas. “É altura de a Academia valorizar em termos históricos a nossa gastronomia. Até para que sejam desfeitas dúvidas que evitem a difusão de grandes asneiras, transmitidas, nomeadamente, por profissionais de cozinha.”
Arroz-doce
“O registo mais antigo está no manuscrito de um frade do Mosteiro de Tibães. A receita tem vários aspetos curiosos, ressaltando a possibilidade de se poder fazer com ‘leite de gado’ ou com ‘leite de amêndoa’, bebida tão em voga na atualidade. O frade indica ainda que se pode empregar ‘arroz da Índia, de grãos compridos’, possivelmente a variedade que hoje designamos por basmati. Aparece referido num livro espanhol, publicado em 1611, como ‘arroz a la portuguesa’.”
Cabidela
“De acordo com a definição do vocabulário gastronómico ‘Do comer e do falar…’, patanisca é uma ‘corruptela de petanisca, nome dado a uma porção de bacalhau desfiado envolvido num polme de farinha e ovo e frito’. Alguns autores colocam a sua filiação em Lisboa, num enquadramento de petisco de taberna. A receita de ‘bolinhos de bacalháo’ pelo Visconde de Vilarinho de São Romão, em 1841, tem sido considerada por diversos autores a mais antiga referência à patanisca de bacalhau.”
Caldeirada
“No mais antigo dicionário de língua portuguesa, a entrada para caldeirada indica tratar-se de um ‘cozinhado de peixe que por função se faz no mar em barcos’. A designação ‘caldeirada’ existe desde meados do século XVIII e surge da utilização de uma caldeira para a sua confeção. Tem origem no latim ‘caldaria’, que significa ‘estufa’. Uma das premissas para o sucesso desta receita advém de se criar um ambiente de estufa num tacho, para que o peixe fique abafado e seja cozinhado ao vapor.”
Canja de galinha
“O vocábulo inicial que designa canja seria ‘pez ou peya’, do sânscrito, que significa ‘bom para beber’. Com a evolução da língua popular indiana, o arroz cozido e azedo é designado ‘kanji’, conduzindo à palavra atual canja. É uma das sopas mais apreciadas por D. Maria Pia e D. Luís I, indo todos os dias à sua mesa. A partir da segunda metade do século XIX, alcança o estatuto de prato festivo, sendo incluída nos banquetes de casamentos e outras celebrações familiares.”
Cozido à Portuguesa
“Ramalho Ortigão, numa das suas ‘Farpas’, descreve um jantar, por ocasião do aniversário do rei D. Luís, em 1872, em que se havia jantado o cozido. Em 1928, Olleboma, no seu primeiro livro, ‘Culinária’, afirma que ‘o cozido à portuguesa é o prato nacional mais usado em todo o país’. É um prato verdadeiramente tradicional na nossa culinária, embora com particularidades regionais que lhe imprimem caráter e distinção. A matriz é a mesma, uma cocção com diversas carnes, verduras e água.”
Pataniscas de bacalhau
“De acordo com a definição do ‘Diccionario da lingua portugueza composto pelo padre D. Rafael Bluteau, reformado, e accrescentado por Antonio de Moraes Silva’, de 1789, o vocábulo ‘cabidela’, no original ‘cabedella’, refere-se a fígado, moela, pescoço e pontas de asas de galinha, peru e pato, tudo cozido em molho pardo, ou seja, sangue. A primeira receita conhecida surge num manuscrito do século XVIII, em que impera o sangue, mas com a omissão do arroz.”
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