Postado em terça-feira, 15 de dezembro de 2020
Desemprego, diminuição das produções de filmes e fechamento de salas são alguns dos problemas enfrentados pelo setor audiovisual, que se esforça para encontrar saídas
Se é possível ter saudade do que não se viveu, 2020 foi o ano para isso. No meio artístico, nem se fala. Não fosse a pandemia de Covid-19, teria sido possível assistir nas telonas a grandes obras da sétima arte. Entre as produções nacionais, o premiado Babenco — Alguém tem que ouvir o coração e dizer: parou, de Bárbara Paz; o esperado Marighella, de Wagner Moura; e A Menina que Matou os Pais, de Mauricio Eça.
E não são só os cinéfilos que saíram perdendo. Para se ter uma ideia, em 2018, o setor audiovisual movimentou R$ 26,7 bilhões do PIB brasileiro. Em 2020, o cenário mudou. Divulgado em junho, o Relatório Sobre os Impactos Econômicos da Covid-19 na Economia Criativa, feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), previu que a perda total no setor criativo nacional (que engloba áreas de cultura, mídia, consumo e tecnologia) será de R$ 69,2 bilhões para o biênio 2020-2021. Isso representa uma perda de 18,2% na produção total que seria possível nesses dois anos.
Não é à toa. O fechamento de salas de cinema e a paralisação das gravações em razão da Covid-19 diminuíram drasticamente a produção de longas-metragens: se desde 2013 o Brasil lançava mais de 100 filmes por ano, esse número não ultrapassou 24 em 2020, de acordo com a Agência Nacional do Cinema (Ancine). "Isso gerou desemprego de equipes inteiras. Empresas fecharam por não conseguir arcar com seus custos e, para socorrer algumas pessoas, tivemos que organizar uma mobilização para comprar cestas de alimentos", conta Sonia Santana, presidente do Sindicato dos Trabalhadores na Indústria Cinematográfica e do Audiovisual (Sindcine).
Para André Sturm, diretor do cinema Petra Belas Artes, em São Paulo, e da distribuidora Pandora Filmes, o meio está sofrendo em diversos sentidos. "Havia muitas produções em andamento, mas todas elas foram interrompidas totalmente, o que foi muito grave porque tudo muda ao longo do tempo: as locações, os atores, o clima, influenciando o resultado final", explica. "Além disso, as produtoras que estavam começando a captar recursos também precisaram parar".
E a crise não se restringe a produção e distribuição: os exibidores estão tendo dificuldades para arcar com as despesas sem o dinheiro das bilheterias, sendo os mais afetados os cinemas de rua, que não contam com uma rede de salas de abrangência nacional para sobreviver. "Os cinemas são lugares grandes, portanto os aluguéis são altos. No caso dos trabalhadores, tentamos não demitir ninguém, pois as pessoas que trabalham nessa área são especializadas e treinadas para exercer suas funções. Assim, demitir também é prejuízo", declara Sturm.
Um levantamento feito pelo portal Filme B revelou que, só em 2019, o Brasil atingiu 3.505 salas de cinema, o maior número desde os anos 1970, quando a pornochanchada estava no auge. Porém, um novo estudo do site divulgado em março indicou que 577 salas estavam fechadas devido à pandemia. E era só o começo. Em São Paulo, por exemplo, os cinemas só puderam retomar as atividades em outubro.
Novos meios de fazer cinema
As principais saídas encontradas para distribuir os filmes que iriam para as telonas foram lançamentos em plataformas de streaming, Video On Demand (VOD) e os drive-ins (cinema a céu aberto em que as pessoas veem o filme de dentro do carro). O longa Música Para Morrer de Amor, por exemplo, estava programado para estrear em junho, na semana do dia dos namorados e da parada LGBTQ+, eventos que se relacionam com a temática do filme. No entanto, a equipe precisou redefinir toda essa lógica quando os casos de Covid-19 começaram a aumentar. "No mês de abril entendemos que o lançamento não iria acontecer. Considerando o público-alvo, optamos por fazer a estreia no drive-in para quem quisesse ter essa experiência fora de casa e, simultaneamente, nas plataformas digitais para aluguel online", conta o diretor Rafael Gomes.
O problema é que fica mais difícil avaliar a resposta do público porque, diferentemente do circuito cinematográfico, que divulga os dados de bilheteria semanalmente, essas plataformas não mostram o número exato de espectadores. Outra questão é a limitação da campanha publicitária da obra. "O filme é baseado em uma peça de teatro, que esperávamos relançar em diversos estados quando ele saísse em cartaz. Porém, tivemos que focar só no fortalecimento das redes para que as pessoas pudessem conhecer", lamenta Gomes.
Para além dessas adversidades, o cineasta também precisou lidar com a frustração de ter pensado em um filme para as salas de exibição, mas que acabou sendo limitado ao meio digital, no qual a fruição dos componentes artísticos, como o som, a fotografia e a iluminação, é menor. "É diferente de fazer um filme encomendado diretamente para o online. Embora a recepção tenha sido boa, nesse caso, fiquei decepcionado pois criamos o filme pensando na lógica cinematográfica", afirma.
Outros artistas escolheram alternativas incomuns para hospedar suas produções. É o caso da websérie Se eu Estivesse Aí, de Gustavo Vaz e Débora Falabella. Lançada diretamente no IGTV do Instagram, toda a produção envolveu apenas os dois atores. "Gustavo escreveu o projeto e ele foi totalmente artesanal, já que fazíamos tudo dentro de casa enquanto estávamos isolados. Todas as gravações e a edição fomos nós que fizemos", conta a atriz a GALILEU. "Foi bom estarmos ativos e experimentando fazer sozinhos um trabalho que geralmente depende de muita gente".
Também disponível no Gshow, a narrativa conta a história de um casal recém-separado que, durante o isolamento social, tenta resolver o fim da relação à distância. O diferencial de Se eu Estivesse Aí é a tecnologia do áudio em 3D, que transporta quem assiste para dentro da série. Funciona assim: o espectador coloca os fones de ouvido e cada um dos lados produz uma parte do som. Ao mesmo tempo, a tela do celular fica toda preta, como se o personagem estivesse piscando — a ideia é que quem estiver vendo pisque junto para se sentir imerso na história.
Ainda que a pandemia tenha trazido dificuldades, o projeto da dupla foi indicado a três categorias do Rio Webfest e ao Asia Web Awards. "Ter feito esse trabalho foi muito importante por causa da pesquisa e da inovação, mas ainda há a preocupação sobre a falta de cuidado das entidades governamentais em relação aos profissionais da cultura, principalmente nesse momento", afirma Vaz.
Esse receio é evidente em inúmeros agentes do cinema nacional, uma vez que a Ancine não preparou protocolos de segurança e nem qualquer tipo de auxílio para os trabalhadores e empresas que estão sofrendo com as dificuldades econômicas. Procurado pela reportagem, o órgão não se manifestou.
Retomar com cuidado
Por outro lado, após a suspensão total das filmagens, o Sindcine preparou um protocolo de segurança para que as produtoras possam adotar novas medidas assim que suas atividades forem retomadas. O documento, que segue as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS), orienta a utilização de Equipamento de Proteção Individual (EPI), áreas de segurança nos sets de filmagem, como deve ser feita a desinfecção dos ambientes, além da higienização pessoal e dos objetos das gravações.
Mas, na urgência de retomar os trabalhos, houve quem estabelecesse os protocolos por conta própria. Foi o caso da produtora Coração da Selva, em São Paulo, que apostou em tecnologia e adaptações no roteiro para rodar O Porão da Rua do Grito, um filme de terror que se passa em uma casa mal-assombrada. "Em março, faltavam duas semanas para filmar quando a quarentena foi decretada. A partir daí, começamos a estudar sobre o vírus e a pensar em estratégias para que pudéssemos realizar a gravação de uma forma segura", diz Georgia Araujo, produtora do longa.
Quatro meses depois, a equipe tinha desenvolvido seu próprio protocolo de segurança em forma de aplicativo. Nele, era possível encontrar documentos de filmagem usados no dia a dia, uma triagem de saúde de todos os membros do grupo e a organização da refeição individual daqueles que estavam no set. Além de abolir os papéis, dos testes RT-PCR semanais e do isolamento do elenco, todas as câmeras foram operadas a distância por meio de tablets. Outra decisão importante que evitou o contato entre pessoas foi a distribuição de sinal de vídeo para todos os aparelhos da equipe para que fosse possível acompanhar as cenas com distanciamento social.
"As duas semanas de preparação foram transformadas em cinco para alternar as equipes e não criar aglomerações no local", relata Araujo. Em relação ao custo desses novos equipamentos, a produtora conta que a economia das adaptações de roteiro, que limitou as filmagens a um único lugar, cobriu os gastos adicionais. "A nossa preocupação era com o tempo que toda essa triagem poderia gerar, mas no fim, a tecnologia trouxe maior produtividade".
A Coração da Selva resolveu voltar à ativa porque viu que seus profissionais estavam há muitos meses sem trabalhar e se submetendo a funções alternativas, como entrega de delivery, o que acabava aumentando a exposição ao vírus. "Naquele momento, voltar ao trabalho significava tirar as pessoas de outro risco, uma vez que conseguimos criar um ambiente muito blindado", afirma a produtora. "Pensamos em uma estrutura de acompanhamento caso alguém fosse infectado, o que não aconteceu". O filme está em fase de edição e tem previsão de lançamento para 2021.
Futuro incerto
Apesar de todas essas saídas encontradas, o momento não é otimista — inclusive em relação ao legado do setor cultural. A falta de filmes no mercado diminui a diversidade de produções que poderiam contribuir para a construção da identidade dos espectadores. "As grandes produtoras, como a Amazon ou a Netflix, que não sofrem com falta de verba, vão continuar criando filmes. No entanto, elas são comerciais e atendem a demanda do público", analisa Rafael Gomes. "Já aqueles com a lógica artística, que são aclamados em festivais, estão escassos".
Enquanto isso, o setor se vira como pode. A plataforma digital Spcine Play, da empresa de cinema e audiovisual Spcine, teve um crescimento de visualizações de 1.051% entre março e dezembro em comparação com mesmo período de 2019. "O cinema não vai acabar porque o ser humano é um ser social e precisa sair de casa eventualmente para desfrutar de programas culturais", aponta Laís Bodanzky, presidente da empresa. "Porém, o audiovisual precisa desenvolver mecanismos para passar por esse momento difícil". E, ao que tudo indica, esse esforço já está sendo feito — pelo bem da arte, da economia e do nosso lazer.
Fonte: Galileu