Postado em quarta-feira, 15 de setembro de 2021
às 11:15
Mulheres, negros e indígenas mudaram o panorama da literatura no Brasil
Pesquisador Fred di Giacomo afirma que ´temas´ de livros agora escrevem sobre a realidade que vivenciam. Antologia ´Geração 2010´ destaca esses autores
Fred di Giacomo está convencido de que o melhor da produção literária brasileira não é feito por brancos nem por homens. O pesquisador, escritor e jornalista vem falando sobre isso há algum tempo. O fez na Feira de Frankfurt, em 2019, em vários artigos e entrevistas, além de ter levado o tema para seu doutorado na Freie Uniersität de Berlin, na Alemanha.
O pesquisador volta à questão com “Geração 2010 – O sertão é o mundo”, seleção de 25 autores que ele considera representantes da boa produção lançada ultimamente. Gente que publica de forma independente – ou não – e está longe da cena literária das grandes capitais.
SEM LISTA
O foco, ele avisa, não é fazer a lista dos melhores escritores, o que seria impossível com 25 nomes apenas, mas destacar “ótimos autores vindos dos sertões, florestas e pequenas cidades”.
O interesse de Giacomo está nas narrativas, especialmente aquelas descolonizadas e de temáticas particulares. Nessa lista entraram, por exemplo, Ailton Krenak, Marcia Kambeba e Mailson Furtado, que ganhou o Prêmio Jabuti em 2018.
Nomes premiados fazem parte da coletânea de contos lançada pela Editora Reformatório, como Itamar Vieira Júnior, que levou o Jabuti e o Oceanos 2020 por “Torto arado”; Raimundo Neto, vencedor do Prêmio Paraná; Micheliny Verunschk, pernambucana vencedora do Prêmio São Paulo; e a cearense Jarid Arraes, que ganhou o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) em 2019.
“Nossa literatura é escrita por autores e autoras espalhados pelo Brasil, muitos dos quais são escritores e escritoras negros, indígenas, LGBTQIA+ e vindos das classes trabalhadoras. Mas eles não são bons autores por ter esses lugares de fala apenas. Fazem, de fato, uma arte excelente, como os leitores, críticos e prêmios têm reconhecido”, afirma.
A demanda por autores fora do eixo cresceu, segundo Di Giacomo, após a adoção de sistemas de cotas e de políticas de inclusão, que permitiram o acesso de minorias e de povos discriminados à universidade.
“Graças à luta dos movimentos sociais, dos movimentos negros, dos movimentos indígenas, tivemos avanços que permitiram uma pequena ´reforma agrária´ do campo literário brasileiro. Quem são os autores mais populares hoje no Brasil? Krenak, Itamar Vieira Junior, Djamila Ribeiro e Jarid Arraes. Nenhum deles é branco”, constata.
“Com leitores demandando esses livros, editoras e prêmios tiveram que abrir suas portas para continuar vendendo. ´Torto arado´ vendeu 200 mil exemplares, isso é muito em um Brasil que não lê. A Djamila Ribeiro é best-seller. Nenhuma editora faz trabalho social publicando autoras negras ou indígenas, elas estão lucrando com isso. Algo que o racismo e o colonialismo nunca permitiram que se pensasse ser possível”, observa Fred di Giacomo.
A coletânea “Geração 2010” reúne Ailton Krenak, Bruno Ribeiro, Débora Ferraz, Franklin Carvalho, Fred Di Giacomo, Gilvan Eleutério, Isabor Quintiere, Itamar Vieira Jr., Jarid Arraes, Julie Dorrico, Krishna Monteiro, Mailson Furtado, Marcelo Maluf, Márcia Kambeba, Maria Fernanda Elias Maglio, Maria Valéria Resende, Mariana Basilio, Maya Falks, Micheliny Verunschk, Monique Malcher, Nara Vidal, Natália Borges Polesso, Raimundo Neto, Santana Filho e Victor Guilherme Feitosa.
Duas perguntas para...
Fred Di Giacomo escritor e pesquisador
Sua pesquisa foca a mudança no panorama literário brasileiro. Qual o impacto disso nas narrativas? Do que trata essa “nova literatura brasileira”?
Uma mudança imediata na literatura é que quem era “objeto” passa a se tornar “sujeito”. Quem era “tema” passa a tornar-se “autor”. Mailson Furtado fala: quem escrevia antes sobre os sertanejos eram os senhores de engenho. Há a mudança na raça e no gênero das protagonistas dos nossos contos e romances e dos cenários onde eles se passam. Há um retrato menos estereotipado e “folclórico” de questões de raça e gênero, das religiões de matriz africana e dos diferentes povos indígenas. E há o que Grada Kilomba, mulher negra, resume assim: “Enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha própria realidade, a autora e a autoridade na minha própria história. Nesse sentido, eu me torno a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou.”
Como as editoras independentes têm participação nisso?
Sem as editoras independentes não haveria essa mudança – que ainda é pequena, pensando no contraste entre o perfil dos autores publicados no Brasil e o da maioria do povo brasileiro. O poeta cearense Mailson Furtado ganhou o prêmio de Livro do ano, no Jabuti de 2018, com uma obra independente. Isso é revolucionário. Dois anos depois, a poeta pernambucana Cida Pedrosa ganhou o mesmo prêmio com uma obra lançada pela Cepe, de Pernambuco. Ambos definem-se como sertanejos, vêm de famílias pobres. A revolução está em tomar os meios de produção. Acho que 90% dos autores que incluí na antologia foram lançados por editoras pequenas espalhadas pelo Brasil. Seria impossível para meia dúzia de editoras do Sudeste ter essa capilaridade e visão.
FONTE: Estado de Minas
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