A soberania no ralo
Autor(a): Alessandro Emergente
Uma fala, exibida em rede nacional no final de novembro, é a síntese de um pensamento e uma prática que, historicamente, se apodera de nossa política. E, que encastelada nos últimos anos, resolveu apresentar-se de maneira explícita, sem o prudente receio de “rasgar” a nossa Constituição Federal.
Vamos ao fato: no dia 21 de novembro de 2016, a edição do Jornal Nacional (TV Globo) trouxe uma reportagem sobre a reunião do presidente Michel Temer (PMDB) com os integrantes do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – o chamado “Conselhão”.
A reportagem fecha, como uma espécie de “coroa de flores” sintetizadora da mensagem que se propõe valorizar, com o “conselho” de Nizan Guanaes, empresário do setor de comunicação. Não é por acaso que são reservados 45 segundos a fala do empresário, a qual reproduzo, na íntegra, a seguir:
“Já que o governo ainda não tem índices de popularidade altos, aproveite, presidente. A popularidade é uma jaula. Ninguém faz coisas contundentes com altos níveis de popularidade. Então, aproveite que o senhor ainda não tem altos índices de popularidade e faça coisas impopulares que serão necessárias e que vão desenhar este governo para os próximos anos. Aproveite sua impopularidade. Tome medidas amargas. Aliás, este é o grande desafio das democracias do mundo. Como fazer coisas impopulares?” Confira aqui
Ora, ao desafiar a opinião popular e propor que o poder político seja utilizado como um "trator", o representante das forças econômicas demonstra o mais puro pensamento aristocrático. Expõe o que costuma-se camuflar: o desprezo pela massa e a sua condição de agente ativo no processo democrático. As vozes das ruas devem, agora, ser ignoradas.
O discurso revela inversão de valores à medida que popularidade torna-se “jaula” (nas palavras de Guanaes), elemento restritivo das ações que atendem aos interesses da elite econômica. Nada mais reacionário do que defender a impopularidade como virtude para que se enfrente o desejo da massa – fazendo valer a força se necessário.
A “demonização” de governos populares na América Latina – facilmente tachados como populistas – tornou-se recorrente em parte significativa da mídia hegemônica, reprodutora do pensamento liberal e aristocrático. Se recorrermos a nossa história encontraremos a figura de Getúlio Vargas como ápice desse enfrentamento.
Nem mesmo teorias reducionistas quanto a participação popular são capazes de abrigar, sem margens às contestações, a legitimidade do poder político do atual governo. O sociólogo alemão Joseph Schumpeter, por exemplo, rompeu com a ideia de democracia como soberania popular, reduzindo a participação das massas na política ao ato de produção de governos (resumindo-se ao voto).
É preciso enfatizar os questionamentos quanto a legitimidade do atual governo por parte significativa da sociedade – não somente as correntes ideológicas, mas sobretudo o acolhimento dessa tese por figuras que são ícones no meio jurídico. O ex-ministro Joaquim Barbosa, do STF (Supremo Tribunal Federal), é um dos críticos dessa legitimidade. (Clique aqui e leia)
Não se pretende aqui fechar essa discussão em particular com um raciocínio raso, mas demonstrar que a impopularidade, associada a ausência de um consenso jurídico em meio a "trovoadas" de incertezas, seriam elementos mais que satisfatórios para que o zelo pela democracia prevalecesse e fosse condição indispensável para que a força econômica não atropelasse a soberania popular.
Para além do pensamento do filósofo francês Jean-Jacques Rousseau, para qual a democracia só se efetiva com a participação direta dos cidadãos, a nossa Constituição Federal resguarda, em seu artigo 1˚ (parágrafo único), que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
Ou seja, a soberania popular não pode ser apenas instrumento de retórica e extirpada a partir de interesses econômicos classistas e aristocráticos. Em uma democracia, não cabe sobreposição do poder econômico sobre a vontade popular como forma de impor uma verdade que não é absoluta. Se a prática aristocrática sobrepor a soberania popular estaremos, por consequência, rasgando a nossa Constituição.