Postado em domingo, 17 de abril de 2022
às 17:05
Indústria 4.0 e políticas industriais
Confira o artigo escrito pelo professora adjunta do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da Unifal, Cirlene Maria de Matos.
Por Cirlene Maria de Matos
A principal característica que define a Indústria 4.0, chamada também de Manufatura Avançada e de Quarta Revolução Industrial, é a conexão entre o mundo físico e o mundo digital aplicada à produção de bens e serviços. O uso intensivo das tecnologias da informação e comunicação nos processos produtivos tem revolucionado as bases técnicas da produção, com impactos sobre as formas de produção, de consumo e de trabalho. Este movimento tem se ampliado rapidamente no mundo todo, e a pandemia foi um fator catalisador deste processo, sobretudo pela maior necessidade do uso de ambientes virtuais.
A conexão entre o mundo físico e o mundo virtual que define a Indústria 4.0 concretiza-se por meio de várias tecnologias, chamadas de habilitadoras, dentre as quais podemos citar computação em nuvem, internet das coisas, big data, impressão 3D, inteligência artificial, realidade aumentada e sistemas ciber-físicos. Estas tecnologias são pervasivas, ou seja, elas são transversais, sendo aplicáveis não apenas a diversos setores industriais, mas também na agricultura e, principalmente, nos serviços. Este conjunto de tecnologias avançadas possui grandes impactos sobre a produção, aumentando a flexibilidade e a produtividade e reduzindo custos.
Estamos testemunhando um novo paradigma técnico-econômico, em plena construção, em que os serviços de alta tecnologia e a geração e o controle de informações assumem importância crescente e estão intimamente ligados à indústria. A título de exemplo, no paradigma anterior o papel do fabricante de bens de capital se limitava à produção das máquinas e equipamentos e, eventualmente, a treinamentos e prestação de serviços de assistência técnica. No novo paradigma, a máquina é capaz de gerar dados em tempo real ao longo de sua vida útil, permitindo que a empresa fornecedora preste serviços continuados à empresa compradora. Isto também possibilita a coleta e uso destas informações nos setores de engenharia e de P&D da empresa fornecedora.
O surgimento da Indústria 4.0 não foi espontâneo, nem meramente técnico. Este conceito surgiu na Alemanha, em 2011, para denominar o projeto alemão de promover a aplicação de novas tecnologias ao mundo da manufatura no intuito de aumentar a competitividade da indústria alemã e fortalecer suas exportações. A Indústria 4.0 surgiu a partir de uma iniciativa de política industrial envolvendo a articulação entre o governo, as grandes empresas alemãs e a academia.
Assim como a Alemanha, os Estados Unidos também tem elaborado políticas industriais e tecnológicas para fomentar a Indústria 4.0 com a participação conjunta de grandes empresas nacionais e do Estado. Estas iniciativas podem ser entendidas como uma reação destes países ao crescimento industrial da China. O desenvolvimento da Indústria 4.0 permitiria a volta da indústria e das cadeias globais de valor para o território dos países desenvolvidos. O progresso tecnológico e industrial da China é fato conhecido. O governo chinês tem fomentado o desenvolvimento de setores considerados estratégicos por meio de políticas industriais que utilizam a demanda pública e o aparato regulatório para promover a Indústria 4.0. Assim, a Indústria 4.0 emerge como fruto de políticas industriais para recuperar, manter ou ampliar a posição competitiva destes três países, que estão na liderança da fronteira tecnológica.
O Brasil experimenta um processo de desindustrialização desde os anos 1990 que provoca uma erosão de sua capacidade produtiva e competitiva. Os setores em que o país mais perdeu participação foram justamente os setores de maior intensidade tecnológica. Neste contexto, o advento da indústria 4.0 é uma ameaça de aprofundar esta regressão. Para evitar que isto aconteça, é necessário que se implemente no país uma política industrial voltada para o desenvolvimento local das tecnologias associadas a este novo paradigma e que tenham como base as capacitações e potencialidades existentes no país. Não basta importar e usar as tecnologias, é necessário produzi-las. Os insumos estratégicos devem ser produzidos localmente. A pandemia deixou isso muito claro, por exemplo, na área da saúde, quando se constatou a necessidade de produzir localmente os IFAs (Insumo Farmacêutico Ativo).
Abaixo da vanguarda tecnológica, ocupada por Alemanha, Estados Unidos e China, existe um grande mercado para a aplicação customizada das tecnologias da Indústria 4.0, permitindo a criação de soluções tecnológicas específicas para o atendimento de demandas específicas. No Brasil existe uma demanda doméstica pelas tecnologias 4.0 que pode atuar como um driver para seu desenvolvimento nacional. Por exemplo, as diversas modalidades de prestação de serviços públicos serão grandes demandantes de tecnologias 4.0, tais como saúde, saneamento, tratamento de resíduos, controle de logística urbana, além de energias renováveis e petróleo e gás. O setor de prestação de serviços públicos pode realizar encomendas tecnológicas que incentivem a geração destas tecnologias, por meio da articulação entre empresas de base tecnológica e o conhecimento acumulado no Sistema Nacional de Inovação. O país possui conhecimento tecnológico gerado pelas instituições de ciência e tecnologia, tais como as universidades, as unidades EMBRAPII (Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial), as unidades ISI (Institutos Senai de Inovação), entre outros, e é necessário alinhar este conhecimento às demandas industriais. Este alinhamento pode ser feito por meio de políticas industriais que identifiquem quais são os vetores de desenvolvimento tecnológico e industrial e os estimulem por meio da demanda pública. As encomendas tecnológicas por meio de demandas municipais, estaduais e federais geram previsibilidade e funcionam como drivers que podem fomentar as construções locais de tecnologia.
A implementação da indústria 4.0 no Brasil pode aprofundar o processo de desindustrialização e esgarçamento do tecido industrial ou pode ser uma oportunidade para dinamizar e fortalecer a indústria nacional. Um posicionamento passivo na direção apenas da importação das tecnologias 4.0 tende a concretizar a primeira opção. Para que as oportunidades colocadas pela indústria 4.0 sejam aproveitadas é necessária uma política industrial voltada para a utilização do mercado doméstico, articulando políticas pelo lado da demanda com o sistema de fomento para criar um sistema de empresas de base tecnológica que possam ganhar escala e se tornar elementos difusores de tecnologia.
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Alfenas Hoje
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