Postado em terça-feira, 7 de março de 2017 às 14:17

Dupla faz "sertanejo inclusivo" com clipes traduzidos em Libras em MG

Com intérprete, artistas de Lavras querem popularizar acessibilidade. Primeiro vídeo, postado em rede social, já tem mais de 28 mil visualizações.


As mãos mexem no ar ansiosas por se fazer entender. Mas os gestos do assistente social Delmir Rildo Alves não comunicam apenas palavras, os movimentos cantam música. Há cerca de quatro meses, ele se uniu à dupla sertaneja Cezzar & Rodolfo, de Lavras (MG), para traduzir as canções em Língua Brasileira de Sinais (Libras). O objetivo é levar cultura a um público que tantas vezes é esquecido no silêncio da falta de acessibilidade.

 “Mas como surdos ouvem música?”, poderia questionar qualquer um ao pensar no assunto. A resposta vem dos sentidos. “Vamos supor que o surdo namora alguém que ouve e quer acompanhar a pessoa em um show. Geralmente eles costumam ficar perto das caixas de som para sentir a vibração”, exemplifica Delmir.

Se não há entendimento verbal, a pessoa com a deficiência só pode sentir a música. Quando o som está alto, ela sente a vibração e pode ter uma noção de ritmo. Em shows, as imagens do telão podem ser um entretenimento e, quando há dança, é possível se encantar pelo movimento dos corpos dos dançarinos.

Em um mundo feito para ouvintes e falantes, é assim que as pessoas com a deficiência acabam “lendo” o dia a dia. “Então eu posso dizer que o surdo, mesmo não tendo a interpretação [em Libras], ele tem a noção de ritmo, da vibração, de dança, as imagens bonitas no fundo do palco”, completa Delmir.

 Mas sem a melodia que torna a música universal, é impossível interpretar uma canção. E foi assim que surgiu a ideia de investir na adaptação das músicas para surdos. “A comunicação do surdo é visual, eles desenvolveram uma língua que é visual. Para uma criança surda, [ao ver os músicos em um clipe], a pergunta é: por que ele mexe tanto com a boca? Elas não entendem isso. Aí que entra a questão: olha, ele está falando em português, que é uma língua oral, ele está falando isso e isso’, explica Delmir. “‘Ah, então essa música está falando de amor.”

Entendendo canções
Delmir pegou pra si a missão de popularizar a Libras para que a inclusão seja uma realidade concreta. O interesse pela língua começou desde pequeno despertado pela curiosidade ao assistir um programa de TV para deficientes auditivos. Quando fez 14 anos, ele cuidou de um menino que tinha deficiência múltipla e começou a ter contato com associações de crianças especiais.

 “E eu sempre gostei da área da linguagem, por isso resolvi aprofundar na área de Libras”, conta. Atualmente, ele é formado em serviço social, já especializado na língua, e faz licenciatura em letras Libras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Tem ainda capacitação em acessibilidade cultural pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

A página Libras Avante, que ele mantém no Facebook, divulga notícias da comunidade surda, vídeos em língua de sinais e curiosidades para quem tem interesse em aprender Libras. O personagem Leo, inspirado fisicamente em Delmir, ainda dá algumas lições para quem quer aprimorar os conhecimentos na língua. Atualmente, mais de 900 mil pessoas seguem a página.

Galeno Cezar Maranho, ou Cezzar, conheceu Rodolfo Avelar Ferreira há cerca de dois anos no salão que trabalha como cabeleireiro. Já com uma carreira solo no sertanejo, Rodolfo chamou Cezzar para formar a dupla. "Eu mexia com pop rock, tinha várias bandas anteriormente, não tinha nada a ver com sertanejo (risos). Aí eu comecei a tocar com o Rodolfo", brinca.

O novo ritmo veio naturalmente e logo depois os dois começaram a compor as próprias canções. Rodolfo já conhecia Delmir da época da escola, e quando o caminho dos dois se cruzou novamente no final do ano passado, a dupla já tinha um CD promocional com três canções próprias e planos de um acústico com mais seis músicas.

“Eu vi a página dele com quase um milhão de acessos, aí eu falei assim: ‘cara’, acho que a gente pode fazer alguma coisa diferente. Aí a gente sentou, conversou e chegou à conclusão de unir os dois, [música e Libras]”, lembra Rodolfo.

“O diferencial é que é uma iniciativa da dupla”, comenta Delmir sobre o projeto. Na visão do assistente social, a área cultural ainda é território pouco explorado em termos de acessibilidade. Ele cita como exemplos positivos alguns livros com DVD para que surdos entendam a história, filmes e programas de TV legendados e alguns artistas infantis, mas em eventos e produções comerciais, o interesse é escasso.

“Às vezes tem intérprete de Libras em shows de grandes artistas, como Safadão, Jorge e Mateus. Mas muitas vezes a exigência acontece mais a partir do município, por legislação municipal que exige um intérprete de Libras no show na cidade”, afirma. Na visão do trio, o fato do sertanejo ser um dos ritmos mais ouvidos no Brasil combina com a expectativa de popularizar a acessibilidade. “Nós chegamos à ideia do sertanejo inclusivo.”

Música acessível
As primeiras gravações foram feitas em novembro de 2016. Nos vídeos, a dupla aparece tocando a música à esquerda da tela e Delmir traduz em Libras simultaneamente à direita em um tamanho maior do que o padrão – ocupando o mesmo espaço da dupla. A novidade tem razão de ser.

“Na língua de sinais é fundamental a expressão facial. Para o surdo saber que é uma pergunta, por exemplo, ele precisa interpretar a expressão facial da pessoa. Aí, [no padrão comum], coloca o intérprete naquele quadradinho e o surdo nem consegue ver direito”, explica.

A primeira música da dupla traduzida foi “Anjos”. O vídeo foi divulgado pela rede social da dupla e se popularizou rapidamente. No início de março, já tinha somado mais de 28 mil visualizações e mais de mil compartilhamentos. “Foi até um trabalho um pouco caseiro, filmei na minha casa, eu mesmo editei e comecei a divulgar”, completa Delmir.

A repercussão do projeto tem sido boa e, segunda a dupla, a maioria das pessoas que agora acompanham os vídeos pelas redes sociais são de outras regiões do país. “Tem cada vez mais pessoas visualizando nossos vídeos e trazendo cada vez mais pessoas para a página”, acrescenta Cézzar.

Pela ideia do sertanejo inclusivo, eles começaram a adaptar os vídeos e material de divulgação da dupla para cegos também, fazendo audiodescrições. No início de cada clipe ou intervalos de músicas, eles descrevem os cenários, detalhes dos artistas, e também fazem a mesma descrição em fotos para os deficientes visuais.

“Nesse primeiro vídeo, da música ‘Anjos’, a gente faz uma parte que chama ‘notas proemiais’, que é justamente essa questão de trazer informação [introdutória] para as pessoas com deficiência visual. Por exemplo: ‘Cezzar e Rodolfo é uma dupla de Lavras que vem se destacando...’, a gente comenta um pouco sobre a dupla. Aí começa o videoclipe”, explica Delmir.

“É meio difícil fazer audiodescrição, eu comecei há pouco tempo. É um processo que gasta tempo, e você precisa estudar e conseguir algum conhecimento. Tipo, qual o nome desse corte de cabelo? Como explicar conceitos de curto e comprido pra quem nunca viu? É igual tradução, você precisa conhecer termos.”

Vida sem som
Mesmo sem poder evitar a timidez, a menina Raíssa não consegue deixar de acompanhar a música “Anjos” com as mãos. Ela é uma das fãs que a dupla conquistou ao adaptar a canção para Libras. Com 11 anos, Raíssa já nasceu sem poder ouvir, consequência da rubéola que a mãe teve na gravidez.

Diagnosticada com neuropatia auditiva, distúrbio no nervo cerebral que causa a perda profunda de audição, a menina teve que aprender a ler o mundo sem sons – e a família, a se comunicar com ela sem palavras.

A iniciativa da dupla sertaneja aumentou o leque musical de Raíssa. Antes ela acompanhava somente artistas infantis que traduziam algumas músicas em Libras. “Ela atraiu pelos vídeos deles porque tem interpretação”, conta a mãe, Maria Aparecida Honorato Medeiros Silva. “E a música, sendo alta, ela sente a vibração também.” No mundo musical, Raíssa gosta ainda de dançar e faz ballet.

Os pais aprenderam Libras quando descobriram a deficiência de Raíssa. A primeira escola que ela frequentou era especial para atendimento de cegos e surdos, e ao ir para o ensino regular, um intérprete traduz as lições da professora. Apesar disso, os pais ainda reclamam da falta de acessibilidade em muitos lugares, como hospitais e igreja.

“O médico não entende o que ela fala quando ela explica o que está sentindo, por exemplo”, destaca a mãe. O pai, Roni Sartre Ribeiro Silva, também lamenta o preconceito que ainda existe na sociedade. “O povo debocha quando ela faz sinais, ou acha que está fazendo sinais ofensivos.”

Para eles, tudo é uma questão de ver a pessoa com surdez como alguém normal que só tem uma comunicação diferente da comum. “As coleguinhas dela quiseram aprender Libras na escola”, cita a mãe, como um bom exemplo de que o contato com a Raíssa desde cedo faz com que as crianças a vejam de outra forma. “Tem aula toda quarta-feira agora [na escola] para as crianças poderem aprender pra conversar com ela.”

Delmir emenda o mesmo raciocínio e acredita que o principal passo para a real acessibilidade é ver a Libras como uma segunda língua do Brasil a ser aprendida. “Seria bom pra qualquer um. Você ampliar: ‘eu sou bilíngue, sei português, Libras’. A gente não aprende inglês? É como aprender outra língua. A gente precisa ter esse olhar.”

O próximo passo para a dupla é fazer shows e eventos com acessibilidade cultural. Entre os itens que comporiam um show acessível ideal está colocar no telão um tradutor de Libras em um tamanho que possa ser visto sem dificuldade pelos surdos e usar recursos tecnológicos, como aparelhos de tradução simultânea, para fazer as audiodescrições das músicas. Paralelo a isso, eles querem incentivar cada vez mais o mundo artístico a traduzir as músicas para Libras.

“Isso é tão novo que a gente não sabe ainda como fazer”, explica Delmir. “Vamos pensar a letra da música. Por exemplo, o Cezzar é compositor. Tem que registrar agora essa música em Libras? Ele escreveu a música, mas quando eu interpreto em Libras, é diferente, por isso que alguns artistas famosos têm receio de ter intérprete de Libras, pode alterar o sentido.”

Libras x português
Delmir explica que a surdez tem níveis que variam de leve a profunda. Quem foi perdendo a audição gradativamente ou tem um nível de surdez de leve a moderado, aprendeu o português brasileiro e sabe se comunicar melhor com ele. Já as pessoas que nasceram surdas ou desenvolveram níveis profundos muito novas, só conhecem a língua de sinais.

“O português é uma língua totalmente diferente da Libras, a estrutura da língua é diferente. Quem aprendeu Libras desde pequena, essa é a língua materna dela. A gente fala que o surdo é um estrangeiro no próprio país”, completa o assistente social.

O Instituto Nacional de Educação de Surdos (INES) foi fundado no Brasil no final do século XIX, quando começou a ser desenvolvida a Língua Brasileira de Sinais com influência da língua de sinais francesa, mas a Libras somente foi oficialmente reconhecida como segunda língua brasileira em 2002 (Lei nº 10.436). Entre as diferenças de gramática que fazem da língua diferente do português, estão a estrutura de conjugação, plural e gênero, por exemplo.

“Na Libras, eles não têm artigos, não têm preposição. Muitos verbos não se conjugam e não tem gênero também. Professor ou professora, na Libras é o mesmo sinal”, explica Delmir, em seguida demonstrando como seria a conjugação de uma frase no passado. “Para dizer: ‘eu conheci você’, na Libras, eu faço o sinal de passado e em seguida o sinal de conhecer. Eu uso esse mecanismo para dar a estrutura de passado. Se eu fosse transcrever ao pé da letra em português, ficaria: ‘passado conhecer você’.”

A língua de sinais também varia de país a país. “Há inclusive falsos cognatos. Um sinal que significa abraço aqui, nos Estados Unidos é amor”, exemplifica Delmir. “Por isso é importante as pessoas entenderem essa diferença, que é uma língua única, diferente do português e de outros países.”

A deficiência no país
Segundo a Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), os últimos dados levantados sobre o número de pessoas com deficiência no Brasil são de 2010. O Censo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que mais de 45,6 milhões de brasileiros declararam ter alguma deficiência, ou 23,9% da população do país.

Cerca de 9,7 milhões declararam ter deficiência auditiva (5,1%). A do tipo severa foi declarada por mais de 2,1 milhões de pessoas. Destas, 344,2 mil são surdas e 1,7 milhão de pessoas tinham grande dificuldade de ouvir. Em Minas Gerais, mais de 32 mil pessoas declararam ter surdez severa.

Além da lei de Libras, de 2002, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência – lei nº 13.146) foi promulgada somente em 2015, buscando garantir acessibilidade em todos os setores da sociedade.

Segundo a Feneis, apesar das leis, ainda há muitas barreiras para o acesso à pessoa com deficiência, principalmente na comunicação. Entre as denúncias mais comuns que a federação recebe estão falta de intérprete de Libras nas escolas, atendimentos em órgão públicos que não tem intérprete de Libras, prestadoras de serviços sem acessibilidade. As demandas estão dentro dos órgãos públicos e também em particulares, como hospitais, planos de saúde, academias, autoescolas, entre outros.

Em termos de acessibilidade cultural, a federação também considera que há muita limitação e dificuldade de acesso a espaços públicos. “Os surdos não têm acesso a cinema nacional, pois filmes nacionais não possuem legendas. Os filmes estrangeiros que são legendados não estão disponíveis em todos os horários e cinemas. Os museus, muitos não têm intérprete de Libras ou vídeos com legenda. Temos conhecimentos de alguns shows de músicas que hoje contam com intérprete de Libras, mas não temos a informação de quantos e quais artistas que disponibilizam isso.”

G1 Sul de Minas


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